Prosa & Poesia

Malditos Bombons

Há dois dias, encontrei na internet, e depois assisti em reportagem exibida por
televisão nacional, matéria dando conta de mais uma operação policial na
metrópole paulista que me faz voltar, muito a contragosto, a tema que sempre
a mim me inquieta profundamente e que de fato não gostaria de abordar, não
fora minha inconformação com a truculência que isso representa como
violação de direitos fundamentais de quem é tão humano, tão cidadão quanto
os que se fardam para, em nome do Estado e ao contrário do que deveriam
fazer, saírem às ruas a espalhar o medo em lugar da paz que lhes compete
promover e preservar.
Perdoem-me, pois, os poucos leitores que sei ter, porque três são os filhos
generosos que se somam a quem os trouxe ao mundo, além de outros tantos
irmãos compreensivos, se considero relevante o que ouvi, vi e pretendo narrar
com a fidelidade que a memória me permita.
Encontravam-se três zelosos policiais paulistas em uma viatura de propriedade
do Estado, ou por este alugada a empresa locadora especializada,
convenientemente equipada para o cumprimento da missão cidadã de prevenir
o rompimento ou fazer o restabelecimento da paz social, quando foram
convocados, por meios próprios de comunicação moderna, a coibir um assalto
que transcorria no interior de um supermercado das redondezas. Prontamente,
com a eficiência que deles sempre se espera em situações que tais, dirigiram-
se ao local, certamente sob o som estridente da sirene denunciadora, e ao
chegarem ao lugar do crime foram informados de que dois indivíduos teriam
praticado ali roubo, ou furto, e se haviam evadido ao saber da aproximação da
polícia. Imediatamente, saíram em perseguição no caminho que lhes foi
indicado por algum também zeloso servidor da empresa assaltada e, pouco
depois, conseguiram bradar a desejada voz de prisão a um dos “meliantes”, eis
que o outro lograra fugir.
Que bela narrativa (para usar expressão que tanto hoje empolga) de sucesso
da força policial. Era o Estado agindo com a presteza esperada, fazendo
“vitoriosa” a atividade preventiva e repressiva que tantos milhões de reais
custa à sociedade com soldos, folgas remuneradas, férias, licenças,
fardamentos, equipamentos, viaturas, armamentos, treinamentos, colégios para
dependentes, formação permanente e assistência psicológica, aposentadoria
precoce, além de alimentação e pousada, tudo indispensável ao funcionamento
do complexo sistema de manutenção da chamada ordem pública, da
segurança dos cidadãos e do patrimônio, seja público ou particular.
Ao que assisti nos vídeos exibidos, foram os três cuidadosos representantes da
lei e da ordem para fora da viatura, que certamente ao estacionar já terá
gerado no “assaltante” pavor pelo menos razoável, eis que como sempre
acontece, certamente porque assim está em protocolo de abordagem, pelo

menos um há de ter saltado do veículo com arma em punho, hoje nem mais de
pequeno calibre, enquanto ao segundo cabe pelo menos a imobilização de
quem, por motivo justo ou não, precisa ser levado à presença da autoridade
com acusação da prática de delito.
A cena – absolutamente comum nos dias de hoje, infelizmente não mais
restrita às chamadas grandes cidades, onde costumava haver a ousadia do
crime, sobretudo à luz do dia, como sempre se disse – talvez passasse
rapidamente a catálogo vencido, não fora o que sucedeu a partir daí e que,
pelo menos para mim, justifica e exige mais um grito de respeito em meio a
essa guerra que se instaurou nos tempos de agora. É que, algemado
certamente por haver esperneado na hora da prisão, o “tão perigoso ladrão”,
talvez daqueles capazes de explodir caixas eletrônicos de agências bancárias
de pronto atendimento, continuava a oferecer resistência, segundo afirmou
depois um dos competentes policiais, e foi preciso amarrá-lo, isto mesmo, com
cordas que lhe prenderam os pés às mãos, pulsos e tornozelos suportando-as
enroladas várias vezes e atadas com nós, provavelmente até de marinheiro, e
provocando dores que nem ele mesmo será capaz de definir, certamente.
Pronto, afinal imobilizado!
Mas era preciso retirar dali, do meio da plateia que já se formava, aquele que
tanta ameaça representava e então dois dos três primatas vencedores (que me
perdoem os irracionais eventual ofensa) deram-se a conduzi-lo para a viatura.
E como fizeram? O primeiro, pôs-se à frente do “bandido” , puxando-o pela
camisa, presa ao pescoço, enquanto o outro, tão satisfeito quanto, o segurava
pelas cordas, e o retrato assemelhar-se-ia a uma rede, dessas que tanto
servem ao repouso e de uso tão comum aqui como no Nordeste, ali não
estivesse o corpo físico de um humano que, jogado primeiro sobre uma maca,
foi depositado em veículo onde sua tortura não terminaria. Gritos, dores,
pedidos de socorro, de piedade, de compaixão, nada disso importava, até
porque, obviamente, só engrandeciam, certamente, o incompreensível
sentimento dos estúpidos e covardes “agentes da lei”.
Um circunstante, revoltado com o que assistira e bradando em vão, calado pela
ameaça que lhe fez um dos vencedores algozes, revolveu continuar filmando o
que depois terminou possível vermos e que, espero por continuar crendo no
Brasil, há de servir para a aplicação de medidas oficiais rigorosas e, quem
sabe, para revisão de métodos até mesmo de seleção dos que irão para as
ruas com a missão de defender o cidadão. O que vi jogado na parte traseira da
viatura policial poderia descrever como um homem enroscado e amarrado em
si mesmo, sem movimento qualquer e com postura indefinida da coluna
vertebral.
Como lhes competia, os trogloditas fardados (que me desculpem os africanos
das cavernas de antanho) conduziram o preso à delegacia de polícia. Não, em
verdade conduziram o carro onde se encontrava aquele infeliz e perigoso
ladrão que na viatura permaneceu enquanto os fardados foram conversar, nem
se sabe o que, com a autoridade policial civil. E só bem depois, talvez por ouvir

gritos desesperados de dor e de socorro, foi que cuidaram de abrir o carro e,
com a selvageria que até então haviam demonstrado, desataram os nós,
permitindo que o corpo fosse vagarosamente retornando à normalidade
postural para, só então, conduzi-lo ao prédio onde havia o xadrez para guarda-
lo.
O crime? Furto de duas caixas de bombons de chocolate.
A cor do preso? Preto.

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