Prosa & Poesia

CONVERSA COM JUSTINA

Pois é, o tempo foi ficando para trás, dia a dia, ano a ano, guardando alegrias, deixando saudades, fazendo tristezas e frustrações, marcando de rugas mesmo os rostos mais belos, dando a cada um escolhas de caminhos, de idas e vindas, de encontros, de desencontros, de lembranças a guardar, outras tantas a dispensar, o tempo foi vida, enfim, e o quanto com ele tenhamos aprendido, ou deixado de perceber, faz-nos vivos a ponto de me permitir beijar-te a fronte, Maria Justina, irmã querida, quando teu espírito se orna de graça para festejar oitenta anos de permanência neste canto do mundo. É beijo de alegria que brota na oração ao Deus de nossa crença em forma de agradecimento supremo por nos haver permitido, a nós ambos, viver este encontro de regozijo.

Tua vinda ao mundo era ansiosamente esperada por Sebastiana, que para aqui já trouxera, então, dois filhos homens – João e José – que se juntaram aos três que o casamento lhe concedera, Altacir, Altamir e Altair, todos a quem dedicava amor igual. Não havendo ainda a tecnologia que hoje permite identificar o sexo do futuro chegante ainda no ventre materno, nossa mãe, ao que muitas vezes ouvi depois de também chegar, torcia para que daquela vez viesse uma filha, sua “menina dos lacinhos”, a quem ela queria vestir com elegância e pentear os belos cabelos como desejava fossem. Imagino, pelo tanto que acompanhei depois, que a ela concedeste alegria incomum porque capaz de realizar aqueles sonhos tão docemente embalados em seu coração sempre pleno de amor incomparável.

Não te negaste àqueles desejos maternos, pelo menos que me tenha sido permitido ver depois que vim, quando já havia ano e onze meses de tua vida terrena, e te fizeste rebelde a também gostar de empinar papagaio, belo rosto que se expunha ao sol, flechando e cortando outras pipas não manuseadas por meninas como tu. Nem mesmo quando escolhias participar de jogos de futebol, e olha que era tempo em que isto, tolamente, era considerado esporte de meninos. Não te importavas e até te havias bem melhor que muitos adversários no controle da “pelota”. Dribles e chutes potentes te permitiam admitida em times de “peladas”, um pouco ainda na Avenida Ayrão dos Piiolas e, depois, na Ramos Ferreira, ali por perto de onde hoje está plantada a quadra da Escola de Samba de Aparecida, de que te fizeste, passado o tempo, torcedora assídua e apaixonada, a ponto de receber em tua casa artistas da bateria que se juntavam a teus filhos, como aos meus, para o desfile que se realizaria a seguir, tanto quanto para curtirem a inevitável ressaca do depois, com os caldos quentes bem feitos que lhes servias.

Teus estudos oficiais iniciaste no grupo escolar Antônio Bittencourt, que tinha a dirigi-lo a professora Janet do Rego Barros Serejo e que possuía em sua congregação a dedicada, bela, doce, rigorosa, competente e meiga professora Sebastiana dos Santos Pereira Braga que, como a mim, a ti conduzia segurando a mão, gesto que, em verdade, permaneceu contigo, assim também em cada um de nós outros, por todo o sempre, mesmo simbolicamente, até seu último suspiro dois meses depois de completar noventa e oito anos na Terra. E foi ali, mana, naquela escola, que deste início à vida artística que até hoje te acompanha, participando de teatrinhos tão bem ensaiados por nossas mestras, quando cantaste, por exemplo, “Falena Dourada, das asas azuis cor de anil”, em apresentação de que participei como o Jasmim que ousava dizer-se mimoso, quando declamaste poemas escritos por Lourenço, o marinheiro pai, comandante da vida, em verdade, que não se permitia deixar de aplaudir tua graça, tua beleza e tua arte sempre que se fazia um hiato entre viagens que constituíam o trabalho de onde retirava nosso sustento.

No Instituto de Educação – onde a diretora Lila Borges de Sá tinha trabalho não pequeno para controlar a disciplina das turmas a que pertenciam tu, Rosa, depois Coimbra, Sônia Neves, Ana Célia e tantas outras colegas próximas que dividiam contigo as alegrias da juventude, de Eddgton Reis Maia, de Arsonval, de Marcondes – também brilhaste em palcos dirigidos por Alfredo Fernandes, nosso professor de Desenho, dividiste aplausos com Ednelza Sahdo, que se faria dama de nosso Teatro, e muitas vezes atendeste a pedidos para declamar a beleza do Encontro que Quintino Cunha cantou ao olhar as águas dos rios que até hoje se beijam e encantam e como era belo te ouvir dizer “vê bem, Maria, aqui se cruzam, este é o rio Negro, aquele é o Solimões, vê como este contra aquele investe, como as saudades e as recordações…”. Talvez seja isto o que estou a fazer aqui.

Foi por esse tempo que conhecemos comandante Ventura – português morador do bairro de Aparecida que, além de haver criado um corpo de bombeiros civis, único na cidade, que dirigia e que terminou por ser palco de sua morte ao retornar de atendimento para apagar incêndio no que hoje é a estrada que conduz a Itacoatiara – incentivou e promoveu a reunião de jovens músicos para apresentações e saraus em entidades onde viviam idosos ou pacientes de doenças então segregadoras, com vistas a diminuir a dor da distância, da solidão, muitas vezes do abandono daqueles que tanto sabiam agradecer nos sorrisos e nos abraços, como nas lágrimas e nos aplausos quando a eles possíveis. Em tardes amazônicas, de calor intenso só comparável com o que se distribuía aos visitados, os sons de teu bandolim juntavam-se aos dos acordeons de Terezinha Tribuzy, nossa prima, de Terezinha Quintela de Alencar, cujo irmão Gerson incumbia-se de marcar o ritmo no pandeiro em que era ás, de Felisbela Simões, grande amiga, e de Vera Núbia, assim como aos acordes maviosos do cavaquinho e do violão de Theodomiro Negrão e de seu irmão, aquele, aliás, que chegou a compor chorinho em tua homenagem e que, em busca de encantar-te, denominou de “Mary Just”. A isso ousava juntar, humildemente, meu próprio bandolim, cujo manejo fui aprender com a professora Setela Motta, que ensinou violino a José, companheiro de serenatas e, depois, mestre em curso realizado na bela cidade da garota de Ipanema. E também tocavas em reuniões que se faziam nas manhãs de domingo na Federação Espírita, ali na rua José Clemente, que Gouveia dirigia, ele que fora nosso vizinho no Boulevard Amazonas, em que nascemos ambos, onde conhecemos José Campos, médium e amigo por muitos anos, para onde nos levavam Sebastiana e Maria Wanderley, nossa Dindinha.

A dança sempre te acompanhou e serviu muitas vezes a José, irmão cuidadoso, para impedir que jovens interessados se aproximassem de ti, chamando-te para o salão assim que um deles se aproximava da mesa em que estavam na Moranguinho, boate do térreo do Ideal Clube. Aceitavas o convite de Zeca e riam ambos, bailando alegremente, do que haviam negado ao frequentador que hoje seria chamado de “paquera”. E foi a dança, talvez em um cochilo de José ou em hora de interesse seu em uma bela moça, que te fez encontrar Yano René, na boate do Rio Negro, o clube dos espelhos que com o Ideal dividia a preferência da “society” de então. Certamente não sabias que aquele encontro com o exímio dançarino de boleros e ritmos semelhantes estava a abrir um caminho que trilhariam juntos por mais de meio século, quase dois terços de tua vida, com quem construíste linda família, trazendo a este mundo Yano Júnior, Adriano Augusto, Carlos Fabio – meu afilhado e ex-aluno, Procurador-Geral de Justiça – Lúcio Mauro e Ana Cristina, advogados, ela hoje campeã de corrida pedestre aqui e em outros cantos do País, todos que Ana Maria criou contigo, como fizera nossa Dinda conosco. Nina, médica, irmã, guardiã de nossos pais, amiga e tua confidente, foi símbolo de amor e dedicação, sempre. Yano, o pai, fez-se bacharel, em minha turma, e depois Promotor, e em todos os momentos de sua trajetória vitoriosa estiveste ao lado, dividindo glórias e angústias, em doação que só o amor permite. E também dele foste mãe em muitos instantes. Os “meninos” foram alunos dos Gracie e viraram mestres de Jiu-Jitsu, fundaram a academia com o nome da família e formaram muitos profissionais e adeptos da arte, inclusive Adriano, teu neto tantas vezes campeão. E em todas as ocasiões, nas festas e nas lutas, ali estavas a irradiar alegria e confiança. Afinal, és filha de Sebastiana!

Ah, não se resume uma vida de oitenta anos em tão pouco espaço para escrever. Como não se condensa amor fraterno de irmão e admirador que teve em ti, mesmo que não soubesses, exemplos de valentia, de coragem, de determinação para lutar e para vencer, assim como de humildade para suportar em silêncio os revezes, que de tão sabiamente por ti guardados nem cheguei a conhecer.

Mãe, irmã, professora, amiga, assistente social por vocação e por convicção, recebeste de Deus a glória da herança de Lourenço e Sebastiana e plantaste o amor, a concórdia e, sobretudo, a alegria da vida em que te fizeste mestra e doutora.

Parabéns, menina Rira!

Lourenço Braga, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas

lourencodossantospereirabraga@hotmail.com

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